Canto XVII

Gerión - Espíritos de famílias da alta nobreza

- Eis a fera com sua cauda aguda, que atravessa os montes e rompe os muros e armas! Eis aquela que em todo o mundo transpira e fede! - começou a me falar o mestre, enquanto acenava para a fera sinalizando que ela viesse à beira da pedra onde estávamos.

E ela subiu com a cabeça e o busto, mas sobre a beira não descansou sua cauda. A sua face era a face de um homem justo, tão benignos mostravam-se seus traços, e de serpente era o resto de seu corpo. As suas garras e o seu tronco eram peludas. Tinha o dorso e peito ornados com pinturas de argolas e laços. Toda a sua cauda no vazio vibrava, torcendo sua forquilha venenosa, armada na ponta como um escorpião.

- Vamos! - chamou o mestre - Vamos até a fera que acolá se assenta!

Descemos pelo lado direito do dique e demos dez passos pela sua beira inferior, evitando as areias quentes.

Quando estávamos ao lado de Gerión, eu percebi, um pouco mais distante, algumas pessoas acocoradas na areia junto à beira do precipício.

- Para que possas ter um conhecimento completo dos tormentos deste círculo, vai tu falar com aquele grupo enquanto eu convenço esta fera a nos transportar. - sugeriu Virgílio.

E eu fui, sozinho, margeando a aresta do precipício, até onde estavam sentadas aquelas almas tristes.

Dos seus olhos escapava-lhes a dor. Com as mãos, defendiam-se como podiam do solo em brasa e do ardente calor. Examinei aqueles rostos, mas nenhum reconheci. Notei que todas tinham uma bolsa pendurada no pescoço, cada uma de uma cor, com um brasão nelas gravado. Uma tinha algo azul com rosto de leão impresso numa bolsa amarela. Outra ostentava uma bolsa vermelha com uma pata branca desenhada. Aquela alma que tinha uma porca azul pintada sobre uma bolsa branca me perguntou:

- O que fazes nesta fossa? Vai embora! E como estás vivo, saibas que o meu vizinho Vitaliano sentará aqui à minha esquerda. Que venha o cavaleiro soberano, que três bodes terá na sua bolsa!

Falou e depois fez caretas terríveis, puxando a língua por cima do nariz. Eu, assustado, voltei para o lugar onde o mestre já me aguardava. Quando cheguei, Virgílio já estava montado sobre a garupa da fera.

- Ora, tenha coragem! - disse, tranqüilo - Monta aqui na minha frente, pois atrás ficarei eu para evitar que sua cauda possa fazer-lhe mal.

Subi então naquele bicho horrendo, tomado de medo e horror. O mestre me segurou firme e então gritou:

- Gerión, move-te afora e desce devagar. Pensa na carga que carregas!

E assim, o monstro deu ré e virou-se na direção do abismo. Onde estava o peito agora estava sua cauda, que esticou como uma enguia, e com suas garras puxou o ar escuro, mergulhando na escuridão. Eu estava aterrorizado. Nunca sentira medo igual. Olhei para baixo e nada vi. Só havia escuridão. Gerión se movia lento, nadando, descendo em espiral. E esse movimento eu só pude perceber por causa da brisa que soprava no meu rosto.

Dante e Virgílio na garupa de Gerion, descem para o oitavo círculo. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX).

Pouco depois comecei a ouvir os lamentos que já dominavam o ar. Debrucei-me para olhar para baixo e vi o fogo. Assustado, logo me aprumei e segurei firme. Depois de cem voltas Gerión finalmente pousou, nos deixando no fundo, ao pé do grande penhasco. Assim que descemos de sua garupa ele sumiu, esvaindo-se na escuridão.