Canto IV

Limbo (Círculo 1) - Castelo dos iluminados

Acordei ao som de um trovão, já nas bordas abissais do fosso infernal, onde ecoam gritos infinitos. Tão escuro e nebuloso era que, por mais que eu tentasse forçar a vista ao fundo, não conseguia discernir coisa alguma.

- Desçamos ao mundo onde nada se vê. - disse Virgílio - Eu irei na frente e tu me seguirás. - e fez uma indicação para que eu o seguisse. Ele estava com uma aparência muito pálida, e por isso me assustei, hesitando por um instante.

- Como queres que eu te siga tranqüilo, se estás com medo? - perguntei.

- Não é medo. - respondeu - A piedade me clareia o rosto, por causa da angustia das gentes desamparadas que aqui sofrem. Andemos, pois temos ainda um longo caminho pela frente.

E assim ele me guiou para o primeiro círculo que rodeia o poço abissal. Naquele lugar não ouvi sons de lamentação, somente suspiros. Só havia mágoa. Como não lhe perguntei nada, o poeta resolveu me explicar que espíritos eram aqueles que eu estava vendo.

- Estes coitados não pecaram, mas não podem ir para o céu - explicou -, pois não foram batizados. Estão aqui as crianças não batizadas e aqueles que viveram antes de Cristo, como eu. Aqui não temos sofrimento, mas também não temos nenhuma esperança.

Senti pena dele enquanto falava e imaginei quanta gente de valor deveria estar suspensa para sempre nesse limbo, e então perguntei-lhe:

- Algum desses habitantes, por mérito seu ou com a ajuda de outro, pôde algum dia ir para o céu?

- Eu era novato neste lugar - respondeu Virgílio -, quando um Rei poderoso aqui desceu. Ele usava o sinal da vitória na sua coroa. Veio, e nos levou Adão, Noé, Moisés, Abraão, David, Israel, Raquel e vários outros que ele escolheu. E deves saber, antes que essas almas fossem levadas, nenhuma outra alma humana havia alcançado a salvação.

Não paramos de caminhar enquanto ele falava, mas continuamos pela selva, digo, a selva de espíritos. Não tínhamos nos afastado muito do ponto onde eu acordei, quando vi um fogo adiante, um hemisfério de luz que iluminava as trevas. Mesmo de longe, pude perceber, que aquele lugar era habitado por gente honrosa.

- Ó mestre que honras a ciência e a arte, quem são esses, privilegiados, que vivem separados dos outros aqui? - perguntei.

- O nome honrado que ainda ressoa no teu mundo lá em cima, encontra a graça no céu que o favorece aqui.

Mal ele terminara de falar, ouvi um chamado que partiu de um dos vultos iluminados:

- Saudemos o altíssimo poeta. - gritou a alma - Sua sombra que havia partido já está de volta!

Depois que a voz se calou, vi quatro grandes vultos se aproximarem. Os seus rostos não mostravam tristeza, mas também não mostravam alegria. Virgílio os apresentou:

- Este é Homero, poeta soberano, o outro é Horácio, o satírico, Ovídio é o terceiro e por último, Lucano.

Quando chegamos até eles, o mestre falou-lhes em particular e depois eles me saudaram, tratando-me com deferência, incluindo-me como o sexto do seu grupo.

Prosseguimos, então, os seis, até finalmente chegarmos ao local de onde emanava a luz. Lá se erguia um nobre castelo de muros altos, cercado por um belo riacho. Sete muros o cercavam. Nós passamos sobre o riacho como se fosse terra dura, depois, sete portões atravessamos até chegarmos a um verde prado, onde muitas outras pessoas conversavam. De lá mudamos para um local aberto, luminoso e alto, onde podíamos ter uma visão completa de todos. Reconheci várias grandes figuras como Enéas, Heitor e César, Aristóteles, Sócrates e Platão, Orfeu, Heráclito, Tales, Zenão, Ptolomeu e muitos outros. Exaltou-me a possibilidade de poder encontrar todos esses espíritos, cuja sabedoria enchia de luz aquele lugar sombrio. Havia mais. Muitos. Tantos eram, que não posso aqui listar todos.

Dante, Homero, Lucano, Virgílio e outras grandes figuras da Antiguidade. Ilustração de Gustave Doré (séc. XIX)

De todos, no final, restamos só eu e Virgílio, pois nossa jornada nos impelia adiante. Chegamos, então, a um lugar onde nada mais reluzia.