Canto XXX

Falsificadores - Impostores - Perjuros
Espírito do Mestre Adamo

Nem entre os loucos mais insanos se viu fúria e crueldade como aquela que se apossou de duas sombras pálidas, nuas, que se perseguiam pelo vale escuro como porcos soltos nas pocilgas. Uma delas afundou os dentes no pescoço de Capocchio e saiu arrastando-o para longe, esfolando seu ventre no chão áspero.

Ficou o alquimista de Arezzo, tremendo, que me disse:

- Aquele louco é Gianni Schicchi. Ele vive sempre assim raivoso e nos maltrata o tempo todo.

- Oh! - disse-lhe - Tomara que aquele outro não te morda também, mas, antes que ele se vá, dize-me quem é.

- Aquela é Mirra - disse -, a princesa depravada, que se tornou amante do seu próprio pai se passando por outra e assim enganou o rei. Da mesma maneira agiu Gianni, que se fez passar por Buoso Donati no seu leito de morte, falsificando o testamento em seu favor.

Depois que se foram os dois loucos raivosos, dos quais não desgrudei o olhar, voltei a minha atenção às outras almas. Vi então um deformado que parecia um violão. Seu corpo estava inchado por uma hidropisia tão grave que ele não conseguia se mover. A sua boca permanecia sempre aberta pois não conseguia fechá-la. Um lábio se recolhia para cima e o outro pendia, solto e pesado. Ao perceber que eu o olhava, ele falou:

- Ó vós que, não sei por que, não sofrem flagelo algum, vede aqui a miséria do mestre Adamo. Em vida, tive tudo o que quis e agora, eu faço qualquer coisa por uma gota d'água. A imagem das fontes e rios que descendem ao Arno me assombra eternamente e isto mais me castiga que o mal que resseca o meu rosto descarnado. Fui eu quem falsificou a moeda cunhada com o Batista e por isto fui torrado na fogueira. O que eu mais queria era encontrar por aqui as almas malditas de Guido, Alessandro e seu irmão. Foram eles que me incentivaram a cunhar o florim com três quilates a menos. Dizem os raivosos que um dos malditos já chegou. Se eu fosse ligeiro o suficiente para me mover pelo menos uma polegada a cada cem anos eu já teria começado a procurá-lo, mesmo sabendo que é preciso percorrer 11 milhas para dar uma volta completa nesta vala, que pelo menos meia milha tem de largura.

- Quem são essas almas que fumegam ao teu lado? - perguntei.

- Elas já estavam aqui quando eu cheguei - respondeu - e, desde então, nunca se moveram. Ela é a falsa que acusou José. Este outro é o falso Sinón, o grego que mentiu em Tróia. Este fedor exalam por causa de sua febre aguda.

Sinón, talvez ofendido pelas palavras de Adamo, juntou as forças, levantou-se e o golpeou. O mestre Adamo retaliou imediatamente atingindo-lhe o rosto com o braço, e disse:

- Embora eu não possa caminhar por este vale, minha mão é livre para o que for preciso.

- Mas ela não estava tão livre quando tu seguias para a fogueira, estava? - respondeu irado o outro - Mas a tinhas muito bem quando cunhavas!

- Agora dizes a verdade, mas não fostes tão verdadeiro em Tróia! - respondeu Adamo.

- Minhas palavras foram falsas, assim como as moedas que fizestes! - gritou Sinón.

E assim os dois começaram uma interminável discussão, e eu permaneci, parado, absorvido pela briga, até que o mestre gritou, irritado:

- Vai, continua olhando! Mais um pouco e eu perco a paciência!

Fiquei tão envergonhado com a repreensão que mal consegui pedir desculpas. O mestre percebeu, e me disse:

- Menos vergonha que essa tua já seria suficiente para lavar falta maior. Deixa para lá, esquece! Mas lembra, se outra vez estiveres exposto a tais situações, cuides de procurar o meu apoio. Querer ouvir tais rixas é gostar de baixaria.